sexta-feira, março 16, 2007

Eutanásia


Estou neste quarto. Nesta cama. Neste corpo. Nesta prisão. Olho para o espelho na parede à minha frente. Consigo ver-me aqui deitada. Não está nada sobre mim. Não estou presa a nada. Mas sinto-me agrilhoada por correntes que não consigo ver. Através do espelho olho para o corpo que está agarrado ao meu pescoço. É um estranho, o corpo de outra pessoa. Já não é o meu. Não o sinto, por isso não pode ser o meu. Já não me lembro do que é tocar, andar, correr. Essas acções, certas para uns, não passam de meras memórias fugidias para mim. Foi há tanto tempo. Foi há tanto tempo que eu senti pela última vez. Tenho saudades de me sentar. Sim, sentar. Dava tudo para me poder sentar outra vez, só isso, só poder estar noutra posição que não deitada. Sou inútil. Tenho tubos dentro do meu corpo que fazem o que eu já não consigo fazer. Todos os dias passo horas a fitar o branco sujo do tecto. Oiço as pessoas que me visitam, que vêm cuidar de mim. Já não consigo falar com elas. Não porque não posso, mas porque não quero. Já não me sinto uma pessoa. Já nem sequer consigo pensar na vida fora deste cubículo. Vida essa que me foi arrancada sem permissão, sem aviso. Estou encurralada neste corpo que envelhece sem que eu o sinta. E esta prisão, este cárcere afectou a minha mente também. Não há liberdade possível, por isso mais vale perder-me de vez. Deixar-me ir. Mas sou uma inútil, nem morrer consigo. Dizem que é fácil morrermos, que a vida é frágil, pois eu resisto sem que queira. Grito à noite em silêncio para eles acabarem o que começaram. Mataram-me, estriparam-me, consumiram-me, porque não me atiraram para o fundo de vez? Sou como um enforcado sustido somente pelas pontas dos pés e as mãos presas. Sem esperança, sem volta a dar. Mas vale deixar-me ir, acabar de vez, deixar a corda sufocar-me. Sim, quero sufocar. Já tentei deixar de respirar, mas não consigo. Quero sair deste purgatório, nem que seja para o inferno, mas sair. Deixem-me morrer.

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