sábado, maio 10, 2014

As coisas que dissémos.



Eu sabia perfeitamente que não te amava. 

Éramos ambos demasiado novos e eu não me apercebi das diferenças abismais entre nós. Até algumas palavras minhas ou a ausências delas era o suficiente para que não encontrasses a tua independência . Não sabia o quanto precisavas de mim.
Aventurámo-nos um dia numa viagem á praia. Mais tarde, enquanto eu lavava a areia que se havia colado ás minhas pernas e dedos, tu decidiste espalhar a tua pelo chão da sala. Ainda restam partículas dessa areia na carpete. Chocada com a tua atitude, perguntei-te em que estavas a pensar. Seguravas um tubo de cola nas mãos e disseste-me que tentavas consertar tudo o que se passava em nosso redor. Nenhuma das peças se encaixava, mas isso não te impedia. Nunca impediu.
Quando o sol transformou toda a substância em liquida, começaste a tirar fotos. As minhas mãos, joelhos, tornozelos, costas. Tentei manter-te a uma distância segura, direccionar a lente para outro lugar, mas não me serviu de nada. Foi assim que te tornaste na única pessoa a conhecer as minhas cicatrizes. Foi assim que enfrentámos a nudez pela primeira vez.
Tu amadureceste mais cedo que eu. Lembro-me perfeitamente da vez em que vieste ao meu encontro após aquela primeira noite. Esfregaste os olhos, tomado pelo cansaço e forçaste um sorriso. Pensei no facto de que nunca tinha dormido com ele, apesar de ter tido essa oportunidade. Provavelmente foi algo que eu sempre quis. Observei-te enquanto se sentavas no meu sofá e moldaste-te a uma sua esquina. Mantive-me sempre longe. Não fazia ideia que querias ser tocado, abraçado, relembrado que tinhas um corpo.
Possuías um odor que já não era o teu  e isso fez-me estremecer.Estava habituada ao leve cheiro almiscarado da tua pele. Gostava de inalar-te por completo, sempre que me deixavas fazê-lo. Quando o teu odor metamorfoseou-se de um agudo castanho dourado para um cinzento apagado,  não te disse que notei. E era só quando voltavas desses outros rumos por onde escolheste perder-te sem saberes que estavas a condenar para sempre o teu espírito.
Á noite, costumava acordar com os teus sussuros a poesia e palavras inconfundíveis. Nunca te contei que isso incomodava-me. Não queria, de todo, que parasses de sonhar. Os versos tensos e os parágrafos antecedidos por pontos finais ajudavam-me a relaxar quando estavas por perto. Ajudavam-me a dormir quando a tua pele pouco roçava na minha, estavas tão perto mas ao mesmo tempo longe, embalsamado em medo pela hipótese de te encontrares comigo nos teus sonhos. Algumas noites eu aguardava, acordada com os olhos fechados, na expectativa que me guardasses nos teus braços, mas apenas sentia a tua respiração enquando suspiravas o nome de outra pessoa.
Quando as árvores perderam as suas cores e tudo se tornou mudo, nós seguimos o mesmo caminho. Apenas via-te de passagem: nos jardins e ruas, por entre os nossos demarcados territórios. Tu tinhas perdido a capacidade de sorrir. Roupas largas e sem estilo substituiram o jovem aprumado que eu conhecera, e uma rodela de metal detinha-se por entre os espacos que uma mulher que não era eu tinha reclamado. Encontrei poesia espalhada nas folhas das árvores que ninguém se lembrou de recolher nos arredores da cidade. Tu tinhas te desconectado de mim, de ti próprio.
Á medida que os anos passaram, apercebi-me que a minha cama era demasiado grande e vazia sem estares envolvido nos lençois. O cheiro almiscarado já não me enebria os sentidos como outrora, e a poesia perdeu grande significado. Vejo, por vezes, resquicios teus nas costas de estranhos, livros de poesia e velhas revistas, mas passou demasiado tempo para conseguir reconhecer-te por inteiro.
Surpreendeste-me, uma última vez, ao apareceres, completo, á porta da minha casa. Eu, que sempre soube o que dizer, fiquei sem palavras.

Eu não sabia que te amava.


1 comentário:

Cláudia S. Reis disse...

O que hoje ainda não sabemos é o que um dia iremos querer. Que belo texto!