sexta-feira, novembro 04, 2011

O rapaz que eu julgava amar.


Através da neblina do quarto, consigo distinguir o rapaz que eu julgava amar. Ele sorri, o tipo de sorriso que indica que está a se divertir demasiado para estar a fingir seja o que for. Os seus olhos estão pequenos e vermelhos, apenas entreabertos, fixados no nevoeiro condensado que se abateu sobre todos nos últimos quinze minutos. A neblina torna-se cada vez mais densa a cada centelha de claridade. O que inicialmente seria uma combinação de uma estranha tensão e simpatias mornas a amenizar o espaço, tornou-se num alegre, infeccioso contentamento, do tipo que é absorvido pela pele, ossos, músculos, mas acima de tudo, pelo sangue. Espalha-se por todo o corpo, desde os pés ás mãos, mas mais importante, pelo cérebro, onde circula e rodopia e contorce-se fazendo disso o seu propósito. Propaga-se através da inalação e desde que os fôlegos sejam profundos e pesados, os pulmões ressuscitam com esta experiência e consegues senti-la penetrar através de cada membrana permeável de cada célula do teu frágil corpo. Uma outra pessoa no quarto acende uma nova luz. Ouve-se,ao fundo,ainda outro longo fôlego com os lábios colados ao copo gelado, outro olhar indiscreto a perfurar o vazio que, quando abandonado,envia em todas as direcções uma descarga de adrenalina envolta em fumo que se introduz, quase de imediato, nos seus pulmões, mente e no fundo dos seus olhos. Apenas mais um sorriso perdido e inconsciente a rasgar a face de outro irresponsável adulto.
Do lado oposto do contíguo quarto, o rapaz que eu julgava amar ri-se enquanto discute. A sua concordância, a maneira como sempre defende os seus argumentos, aliados a um olhar de menino malandro escondido atrás de discursos analiticos, insinuam que oculta uma história, uma vivência. Consigo quase antever que existe uma carta que ainda não tenha jogado e que se encontra escondida na manga do casaco. Continua a defender o mesmo ponto de vista de sempre. Nunca mudou. Convenceu-se que é feliz assim. Mas com aquele sorriso, aquele inconsciente e despreocupado sorriso nos lábios, espelhado por cada individuo no quarto, nunca seria possivel adivinhar a mágoa enraizada no seu coração por causa de um pai que nunca aprendeu a respeitar e uma família destruida pela ausência de autoridade. Uma nova centelha de claridade.
Tenho estado envolta em neblina,pelo que me parece agora, uma grande parte da minha vida. É apenas outra madrugada cruel revivendo cada momento. Costumava viver a minha vida deste modo, todos os dias. Durante meses escavei memórias e ausências de toques, esquecendo-me de contar quantas noites adormeci nos recantos, em sofás estranhos, sem paixão. O meu corpo sucumbia aos efeitos de cada golo de oxigénio miscigenado com promessas de fumo. Conheci um rapaz que julgava amar, que era louco por mim, que me dava beijos purpúreos e chamava-me linda. Com o tempo, conheci os seus amigos, deixando-me prender por um mundo do qual sempre tentei fugir. Enquanto fixava-me no seu sorriso inconsciente,ouvia as mesmas invenções que me atirara em cada restaurante e café que visitámos. Até certo ponto, considerei a situação envolvente. Ao menos, demonstrava alguma paixão. Mas, enquanto uma mão tentilhava o telemóvel que nunca deixava para trás, a outra tentava alcançar as arestas do copo e apercebi-me que o ar tornava-se rarefeito, á medida que a cinza, a resina e a neblina, aliados á recordação de tudo o que eu costumava ser, estreitavam-me a traqueia. Engasguei-me.
Dirigi-me ao quarto de banho e, deparando-me com o espelho, apercebi-me que pouco ou nada mudei nestes últimos meses. O meu cabelo continuava castanho, ainda macio, apenas mais comprido que em Fevereiro. Eu ainda era alta, larga, com ligeiro peso a mais para a minha idade e altura. Fixei-me no reflexo, demasiado consciente da respiração aprisionada do meu corpo, o compassado pulsar dos meus pulmões desesperadamente aspirando por ar puro e limpo. Nesse momento,ouvi a porta atrás de mim mover-se. O sorriso inconsciente do rapaz que eu julgava amar surgiu então no espelho, por cima do meu ombro esquerdo, tinha o sorriso inabalável apesar de ter deixado o quarto repleto de fumo para trás. "Estás bem?", perguntou ele. Não sei como proferiu aquelas palavras. Devem ter-se esfumado através das frestas dos seus lábios, pois a sua boca não se moveu um único milimetro; permaneceu estática, parada no seu sorriso magnético. Virei-me para ele.

"Acreditas mesmo em todas as histórias de que te apropriaste; na vida que criaste para manter esse sorriso inconsciente?"

Ele permaneceu sem reacção. Após alguns segundos, sorriu abertamente, como se a sua garganta, o seu esófago e o seu estômago se expandissem para abrir caminho. O riso escapou assim do fundo do seu estômago, subindo até alcançar o ar nocturno e envolto em cerração. Era profundo, intimidante e assustador em comparação com o minúsculo tamanho do quarto de banho. As suas mãos alcançaram-me e tocou-me nos ombros. "Neste momento, acredito. Mas quando estou contigo, todas as histórias perdem o sentido e assassino a vida que desenvolvi longe de ti."; retorquiu ele.
Atravessei o longo corredor, arrastando-me pela casa em direcção á porta de saída, afastando-me do rapaz que julgava amar até áquele momento, e continuei a caminhar até não haver nada nos meus pulmões a não ser ar puro.

4 comentários: