sexta-feira, outubro 14, 2011

Até adormecer...

Conto silenciosamente o deambular do ponteiro dos segundos, sem me distrair. Uma estranha sensação de náusea parece emergir vagarosamente a partir do abdomen como que consequência dos movimentos regulares, do constante tique-taque que me faz contar os minutos que passam demasiado devagar. No mesmo compasso do ritmo perturbante do relógio, a minha mente começa a divagar e pensamentos abrem caminho para as memórias que eu tento constantemente esquecer.
Viro-me lentamente para o outro lado, ao mesmo tempo que tu filtras todos os meus pensamentos, com esperança que um movimento abrupto inicie uma distração qualquer. O que atravessa a minha mente parece funcionar por escassos momentos enquanto me apoio sobre o meu próprio peso, mas o inaudível som é rapidamente engolido pelo constante tique-taque. O nó que se formara na minha garganta estreita-se á medida que a minha atenção dispersa-se e numa tentativa de diminuir a desconfortável tensão, tento alcançar o relógio na mesa de cabeceira, esperando sincronizar o tempo e o som.
Neste momento taciturno, não há claridade . Nem os números digitais se se dignam a auferir algum brilho. Suspiro porque não sei ao certo se a eletricidade fora cortada ou se estou novamente a imaginar coisas.
Deitei-me na cama porque queria dormir, mas é a última coisa que consigo fazer. Estou deitada com a minha face enterrada nas almofadas desprovidas de calor e tudo o que consigo fazer é pensar em ti, ainda que tenha conseguido eliminar esses pensamentos durante o decorrer dos dias. A tua imagem ressuscita ao cair da noite e por mais que eu tente pensar em outras coisas e concentrar-me nelas, nada consegue enterrar a tua memória.
Fecho os olhos enquanto o peso pressiona um lado do estomago causando a impressão que este orgão está sendo dobrado, sensação que parece ser mil vezes pior assim que penso nisso. A ausência de luz mancha a escuridão, mas a incapacidade de reconhecer formas familiares dentro do meu quarto não causa nenhuma sensação de alivio. Com os olhos cerrados, consigo ver as coisas com maior intensidade, as cores e imagens tornam-se mais vividas dado que são as unicas imagens em que me concentro.
Uma onda de má disposição assoma-me o corpo, tateando a carne exposta, um arrepio frio e simultaneamente quente quase extravaza a pele, causando um estremecer que me envolve toda a espinha. Quase consigo sentir o estomago mover-se, ameaçando dobrar-se completamente e abrir caminho até aos intestinos. Inspiro e expiro pausadamente, tentando clarear os pulmões, mas a tentativa de expelir uma mágoa que se tornou física revela-se infrutifera. Quando o oxigénio se precipita para o meu sistema respiratório, arrasta consigo o odor a comida podre, a suor bolorento e sobretudo, a tua essência.
És tu que encontro embrenhado no tecido das roupas que não foram lavadas. És tu envolto em mim, levemente disfarçado pelo lençol pegajoso de transpiração. De alguma maneira que não consigo explicar, difundiste-te em tudo, ainda que nunca tenhas estado neste quarto, nesta casa, neste lado da cidade. Nunca aqui estiveste e agora recusas-te a sair.



Quando acordei, tu não estavas lá, mas o calor do teu corpo irradiava do teu lado da cama. Instintivamente, deixo-me fluir nas impressões que deixaste, encontrando conforto nas reminiscências da tua presença. Um relógio algo distante marca a hora deixando-a ressoar através do vazio que existe lá fora. Forço-me permanecer consciente, sabendo que ainda é bastante cedo para estar acordada mas sentindo-me incapaz de reprimir toda esta insegurança.
A coerência parecer surgir um segundo depois, quando a dúvida transforma-se em ansiedade. Imagino inúmeros e diversos cenários, mas que eu saiba, nada impediu o progedir do tempo. A cama vazia potencia teorias descabidas para explicar o que não consigo.
"Estás acordado?" Pergunto e a minha voz corta amargamente o silêncio. A minha questão rapidamente afunda-se no tecido dos lençois, o interrogatório absorvido pelo ambiente pesado antes que te seja possível responder. De repente o cobertor que me cobriu e envolveu torna-se rude, acrescentando tensão ao meu irriquieto corpo.
" Estás acompanhado neste momento que te impossibilita proporcionar uma resposta a qualquer pergunta que te coloque?" Rio com pesar, colocando um braço cautelosamente entre a enorme quantidade de lençois e a mesa de cabeceira.
Tu não ris; não tens qualquer reacção. Não há qualquer resposta á minha atrevida pergunta e isso é mais do que suficiente para eu saber que algo está errado. Por breves momentos, considero a hipotese de estar a exagerar, que isto não significa nada e que apenas acordei de um pesadelo que não consigo recordar. Não posso, no entanto, confiar nessa esperança porque aparentemente, sou paga para exagerar e levo o meu cargo demasiado a sério.
Correntes de ar frio atingem-me a pele exposta enquanto eu,cuidadosamente, procuro algo que sirva para me defender; assumindo que a segurança do quarto foi violada e cada movimento que faço pode ser o ultimo. Mas não está cá ninguem. Nem mesmo tu. Não oiço nada, não sinto nada. Estou completamente sozinha e o quarto é definitivamente seguro, mas mesmo assim, algo está errado.
Quero telefonar-te, mas algo impede-me. Aprisionada na incerteza de ser uma amiga preocupada ou uma amante ciumenta, engasgo-me, demasiado envolvida emocionalmente para permanecer afastada. Não consigo telefonar-te porque sei que me devastaria ficar sem uma resposta. Não tenho coragem a ponto de pensar que desapareceste e que, de algum modo, eu perdi-te precisamente quando dormias a meu lado.
Os lençois erguem-se lentamente sobre mim enquanto eu respiro, sustendo deliberadamente o folego enquanto o meu coração bate contra as minhas costelas. A escuridão diminui gradualmente á medida que os meus olhos se adaptam á luz trémula do interior do quarto; a atmosfera torna-se menos sinistra assim que o layout que tão bem conheco se apresenta diante do meu olhar.
O meu braço pende do meu lado da cama enquanto o sangue percorre cada centimentro do meu corpo. A sensação de mil formigas invadindo o meu braço apodera-se de mim mas eu recuso-me a ceder a esta distracção visto que já passei por muito pior.
Quando expiro, faço-o pela boca, entreabrindo parcialmente os lábios desidratados para retirar algum enfâse á situação. A pressão no meu peito diminui sempre que os meus pulmões se esvaziam, mas não ajuda a interromper o bater ansioso do meu coração. o teu lado da cama torna-se gelado por estar exposto e a temperatura do quarto parece baixar á medida que tudo á minha volta se desvanesce. Direcciono a minha cabeça para a almofada, o molde que deixaste na mesma começa agora a desaparecer.
Assim que os objectos que me envolvem começam a voltar ao normal,não consigo evitar atribuir alguma morbidez a tudo isto; sentido ao mesmo tempo que estou sistematicamente perdendo pedaços de ti sempre que algum indicio da tua presença se esfuma perante mim.

Não vais voltar.

Já não consigo sentir-te. Não consigo cheirar-te.Durante um fragmento de segundo juro que me esqueci da tua aparência. A almofada retrai-se enquanto passo a mão na sua superficie macia e fria, disposta a aguardar pelo teu regresso. Um pânico entrelaçado nas minhas palavras apressa-se a subir pelas cordas vocais mas a minha garganta estreita-se e recusa-se a fazer alguma coisa. As palavras receosas são forçadas a descer então ao estomago, as minhas mãos estremecem enquanto esta sensação parece partir-me em duas.
Deixo cair, de forma deveras rude, a faca que os meus dedos apertavam calorosamente. Um ruido ensurdecedor apodera-se de todo o ambiente, estilhaçando os meus pensamentos desorientados. A mistura provoca uma reviravolta, fazendo com que levante o meu outro braço da cama, no mesmo instante em que observo os lençois suspensos por rasgos de sangue. Quando os bolsos se tornam mais finos e embebedam-se na almofada saturada, o meu pulso emerge banhado de vermelho e de repente, eu apercebo-me que o som ensurdecedor que embate no meu mundo estilhaçado é apenas a minha voz a gritar o teu nome.

3 comentários:

Dário Rodrigues disse...

Sabes Vanessa...

Gosto da maneira como falas de sentimentos, de mágoas. Gosto da maneira como pensas e escreves. Tens na tua escrita momentos de genialidade. Leio-te... "Até adormecer..."

Beijinho...

Catarina disse...

obrigada querida pelas tua lindas palavras e por seguires. Escreves super bem :o
muito obrigada pelo teu carinho !

Vanessa Kiekeben disse...

Obrigada a ambos, pelas palavras e pelo carinho :)